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Terça-feira, 24 de dezembro de 1999. 06h12min. Chovia muito. E mais uma vez ela retira as cobertas (cobertas?) e levanta-se. Já é tarde, é hora de levantar. Daqui a pouco os guardas, já familiarizados com ela àquela altura da vida, viriam para tirá-la dali. Afinal o dia já amanheceu e é hora de camuflar-se. Retirar-se do campo de visão das “pessoas de bem”. Dar-lhes a ilusão de que vivem em um mundo bom, tranqüilo, onde a paz e a igualdade reinam acima de qualquer mau. Além do mais, o que poderia fazer? Que forças tinha para mudar a situação em que se encontrava? Nascera daquele jeito, sem identidade, sem amparo, sem esperança, sem passado, sem futuro. Duvidava piamente de que podia mudar algo. E em parte estava certa.
Já havia vivido 16 verões. Sim, ainda era jovem. Estava na flor da idade! Estaria, se tivesse outra vida. Afinal, quando não se tem nada na vida não existem essas bobagens de “juventude” e coisas desse tipo. Há muito se desiludira. Nunca poderia desfrutar daquelas coisas que observava à distância. Coisas como uma família ou um teto sob o qual se abrigar. Sonhos, então, não tinha nenhum. Para quê sonhar? Já era bastante complicado viver...
Mas como dizíamos, havia vivido 16 verões. E aquele, especialmente, vinha se mostrando bastante ruim. Mal havia começado e já causara seus estragos. Havia chovido naquela primeira semana de verão mais do que ela se lembrava de ter chovido em toda a sua vida. E quando se vive nas ruas, cada relâmpago é um pesadelo, cada trovão, uma agonia sem fim. Sem contar o frio, que fazia doer os ossos e bater o queixo. Não, ela não gostava de finais de ano. Não tinham nada de especial.
Estava com fome. Era cedo. Aliás, mesmo se não fosse cedo, estaria com fome. É a sina de quem não possui para si nem a capacidade de se sustentar. Dependia da bondade (piedade, talvez soe melhor) alheia e nem sempre se saía bem. Dirigiu-se então à padaria mais próxima: a do Seu Francisco. Seu Francisco, esse sim era um homem bom, pensava ela. Alma generosa, sempre que via a menina corria logo para oferecer-lhe algo. Sempre a convidava para entrar e se sentar. A menina não estava acostumada com tal trato e por isso evitava ir ali sempre que podia. Parecia-lhe injusto que ela tivesse regalias que outros de seus companheiros de rua não tinham. Não que fosse ingrata aos tratos de Seu Francisco, mas ali não parecia seu mundo. Era confortável demais, quentinho demais. Soava estranho, como uma nota fora do tom.
Mas aquela não era hora para isso. A barriga doía, e nesses casos é necessário deixarmos de lado as convenções. Então ela foi. E comeu. Até se fartar. Raridade, sabia ela. Não “poderia” voltar à padaria nas próximas semanas, senão sua consciência não a deixaria em paz. E consciência tranquila era o mínimo que ela poderia desejar...
Ao sair da padaria ela perambulou pela cidade, como gostava de fazer. Está aí uma coisa que não poderiam tirar dela nunca: a cidade era sua! Poderia apostar que ninguém naquele lugar conhecia aquelas ruas como ela. Cada esquina, cada praça, cada colégio. Sim, colégios. Ela gostava deles. Lembrava-lhe a vida que nunca poderia ter, mas da qual, paradoxalmente, sentia saudades. Isso era possível? Não sabia. Mas sabia que gostava de ficar ali, sentada em frente a qualquer colégio, observando as crianças – das mais velhas às mais novinhas – entrarem por aqueles portões para viverem mais um dia de aventuras escolares. Ah, como ela daria tudo pra poder passar um dia ali dentro, e descobrir a sensação de aprender! A sensação de participar, de se sentir incluída. Mas sabia que nada disso era possível, então logo saiu dali. Poderia atrair olhares para si se ficasse ali por muito tempo, e isto era desagradável. O anonimato, várias vezes, era uma benção, pensava.
A tarde era a parte do dia que mais gostava. Principalmente as ensolaradas. Correr atrás das pombas era uma de suas atividades favoritas. Dava uma sensação tão boa de liberdade...
Havia também, naquela cidade, um lugar que ela considerava especial, como se fosse seu esconderijo, seu lugar secreto. Gostava de ir pra lá quando se sentia sozinha demais ou o contrário, quando estava feliz. E dessa vez se dirigiu para lá, temo que pelo primeiro motivo. Tal lugar era uma praça situada no bairro mais alto. As casas ali não eram nem tão ricas nem tão pobres, possuíam uma beleza simples, singular. De lá de cima era possível avistar toda a cidade, de uma ponta a outra. Pelo fato de ser um bairro simples e sem muitos atrativos não era todas as pessoas da cidade que o conheciam, o que dava um toque particular ao seu esconderijo. A praça em si era pequena, com não mais do que algumas árvores cercadas por alguns brinquedos de escorregar e alguns bancos. O lugar perfeito para sentar-se e deixar a vida passar devagar, sem a habitual correria que emanava da cidade logo embaixo. Naquela época do ano, em especial, as luzes de natal que enfeitavam a cidade, somada à luz dos postes e algumas residências formavam uma bela constelação, como se a cidade fosse um grande lago que refletisse o céu estrelado, algo lindo de se admirar. Sentia dentro de si que, se algum dia na sua vida havia sido feliz, vivera esse dia ali, naquela praça, sozinha, só com o sol por companhia.
Esse dia, em especial, sentia-se triste. Não que fosse uma menina assim, apesar de que sua condição pudesse justificar tal sentimento. Mas não, na maioria do tempo era uma menina alegre, tranquila, agradecida ao (muito) pouco que possuía. Mas aquele dia não. Aquele dia estava cabisbaixa. Sentia-se deprimida com a crescente onda de esperança que irradiava de todos. Seria de se esperar, afinal, era fim de ano, e todo fim de ano é dotado de uma esperança meio sem sentido que todos compartilham, de que, no ano seguinte, todos serão melhores. Esse ano, porém, tinha algo mais. Como dito, estávamos no ano de 1999, ou seja, era a virada do século! Ou melhor, do milênio! Motivo suficiente para que a onda de esperança que parecia vir de todos os cantos a deixasse triste. Chegava a beirar a raiva.
Não entendia como isso funcionava. Como todos conseguiam fingir que estava tudo bem? Como podiam ignorar a miséria que eram suas próprias vidas? Como podiam ignorar a desgraça que era a existência de pessoas como ela própria? Não dava, não conseguia engolir! O que diferenciava o primeiro dia de janeiro do último de dezembro? Pensava ela. Nada! Absolutamente nada! Não importava se mudava o ano, o século, o milênio ou o que fosse, no dia seguinte todos continuariam os mesmos! Sempre iguais ao que sempre serão...
Mas como sabemos, não era noite de ano novo, ainda era natal. Ela então encostou a cabeça em uma árvore e ficou ali, parada. Sem pensar em nada, apenas deixando a noite chegar, levando consigo a raiva que ela nutria. E assim as luzes da cidade começavam a se acender. Uma após outra, bem embaixo dela. Eram as estrelas aparecendo! Ao menos era um espetáculo bonito de se admirar, pensava.
E se sentiu privilegiada. Por estar ali. Por poder, de alguma forma, participar daquilo. Mesmo que fosse do lado de fora. Como estaria o mundo dali a uns dez, doze, quinze anos? Pensou. Talvez seja um lugar melhor para se viver. Talvez haja uma casa para cada criança, uma família para cada um... Como será que ela estaria? Crescida, certamente, mas e aí? E o Seu Francisco? Ele já era velhinho, será que continuaria saudável? Desejava que sim. E seus companheiros de rua, sobreviveriam? Melhorariam de vida, continuariam na mesma? Eram perguntas sem respostas, sabia ela, que só o tempo poderia esclarecer...
Foi então que um sentimento diferente invadiu seu coração. E então ela começou a sentir pena das pessoas com as quais se irara momentos atrás. Afinal, elas pareciam levar uma vida tão vazia, tão desprovida de sentido. Podiam estar reunidas em torno de uma (várias) mesa, dividindo a mesma comida, mas, muitas vezes, sentiam-se só. Eram pessoas ocas...
Pouco a pouco, então, ela foi se entregando a esse sentimento de piedade que agora a consumia, e ia, mesmo contra a sua vontade, unindo-se àquela atmosfera de esperança que tanto repudiava. Afinal, era fim de ano, fim de milênio, quem sabe o ano que estava nascendo não seria melhor? Quem sabe ela não acharia uma família? Quem sabe... Quem sabe...
Dali a alguns minutos Jesus nasceria novamente, e, junto com ele, talvez viesse um mundo melhor.
Foi assim que ela recostou-se, ali mesmo, naquela praça. Nessa noite a chuva dera uma trégua e a menina pôde desfrutar de uma noite tranquila, quase feliz, embaixo daquela árvore. Acordaria logo cedo na manhã seguinte, como estava habituada e, quem sabe, o mundo não estaria melhor? Quem sabe ela não acordaria em um quarto quentinho, com vários cobertores, cheio de móveis e brinquedos?
E assim ela dormiu. E sonhou com o mundo que nunca teria a oportunidade de conhecer. Mas que provara um dia, sob a copa de uma árvore, acima de uma linda cidade iluminada.